terça-feira, 22 de fevereiro de 2005

Passagem de testemunho

Depois que o seu único filho havera morrido num acidente de automóvel nunca mais deixou de usar laço preto. Era pessoa de poucas falas, seca e muito exigente para com os seus colaboradores.
O turno começava de madrugada, a minha missão era manter aquelas cem máquinas sempre a trabalhar e gerir a produção; fazia-o com garra de quem domina o ofício e orgulhava-me da confiança que me depositavam. Trabalhava que nem um Mouro mas, naquela altura, já ganhava três vezes o salário de um homem.
Longe ia o dia que o senhor Silva entrou pontualmente, como sempre, e mandou chamar-me. Animosidade na voz e felicidade nos olhos como não via há algum tempo. Deitou-me o braço sobre o ombro e levou-me a percorrer a fábrica. Senti-me enjaulado e envergonhado aos olhos daqueles operários que ali trabalhavam ainda eu não era nascido.
Agora recordo com ternura o que muito mais tarde compreendi, o testemunho que aquele braço representou para mim e para aqueles que o presenciaram.